sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

DESGRAÇA ESPETACULAR...

Aristide assiste sem maiores espantos a mais um atendimento no hospital em que trabalha já faz dois anos. O paciente é um rapaz que foi achado ferido por soldados da força de paz da ONU e que foi encaminhado ao hospital já à beira da morte. Infelizmente essa cena é rotina para Aristide, que mesmo fora do hospital a caminho de casa, não raramente, se depara com corpos pelo chão, abandonados por seus algozes sem nenhuma cerimônia. É a dura realidade de um dos países mais pobres do mundo, sem estabilidade política e econômica, e sem um mínimo de infra-estrutura para a vida digna e dominado pela pobreza e violência.

De repente, enquanto assiste ao atendimento do rapaz trazido pelos soldados da força de paz, como que em um bombardeio, Aristide se vê soterrado num escuridão completa, sentindo o ar rarefeito e com dores em tantos lugares do corpo que é até difícil identificar onde dói. Tudo é pó, cimento, dor e angústia...

A história de que quando você está à beira da morte, sua vida passa em em um segundo na sua cabeça, como se fosse um filme, foi comprovada em parte por Aristide, que realmente assistiu em sua mente um filme da própria vida enquanto nutria esperanças de ser resgatado, Só que não foi em um segundo, o filme passou durante cinco dias. Foram cinco dias de angústia e solidão, um tempo em que lutou bravamente contra a morte e a vontade de logo perecer, para que findasse o seu sofrimento. Na verdade não tinha nem idéia de quanto tempo havia se passado ali debaixo daqueles escombros.

De repente um ruído. Inicialmente distante. Um som aparece como um fio de esperança para ele que já tinha quase desistido de tentar sobreviver. Ele escuta o que parece ser uma voz, perguntando se ele estava bem. Foi com imensa alegria que ele percebeu que finalmente poderia sair daquele pesadelo e então ser salvo. Depois de quase quatro horas de operação de resgate ele é finalmente retirado daquela situação.

Que susto! Que alvoroço! Quantas câmeras! Quantos idiomas que não tem nem idéia de onde sejam! Quantos flashs, quanta badalação! E ele só quer saber o que aconteceu... Foi ataque terrorista? Onde estão os meus companheiros de hospital? que alvoroço é esse?

Depois de algum tempo ele consegue escutar de um dos repórteres que em inglês disse: _ Vocês puderam acompanhar esse emocionante resgate de um sobrevivente que mesmo depois de cinco dias soterrado debaixo do hospital que ficou completamente destruído após o terremoto, consegue sair com vida!

Ele só consegue pensar em duas coisas: "Meu Deus, que repórter idiota, se sou um sobrevivente é claro que saí com vida"; e depois que pôde interpretar melhor as informações e perceber a dimensão do ocorrido ele pensa: "Minha família...!"

No caminho para o hospital militar, montado de improvisação pelas forças de paz da ONU, Aristide não acredita no que vê. É notório que seu país não tinha uma infra-estrutura nem perto da mínima pra vida digna, mas agora está completamente destruído. O que ele achou que não podia piorar estava irreconhecível. O caos, o desespero e o abandono tomavam conta.

Era difícil ver um prédio de pé. Os que ainda estavam de pé estavam seriamente comprometidos. corpos espalhados pelo chão. Pessoas desesperadas andando pra lá e pra cá em busca de familiares, de água, de comida, ou simplesmente andando sem rumo. E além disso tudo uma coisa impressiona Aristide. A quantidade de equipes de reportagem. De todos os cantos do mundo.

Uma tropa de repórteres observa e persegue Aristide, o símbolo de esperança de um país destroçado por um terremoto. Todos os seus passos eram seguidos. Qualquer mudança no seu boletim médico, a sua luta incansável para descobrir o paradeiro de sua família, os lugares por onde passa, as dificuldades que enfrenta, o seu dia a dia... tudo esmiuçado nas telas do mundo todo. Um Big Brother da Desgraça Alheia...

No Brasil, uma população imensa acompanha em detalhes a história de nosso herói haitiano. Com riqueza de detalhes o dia a dia de Aristide é compartilhado com os brasileiros através dos telejornais:

* Veja daqui a pouco no Bom Dia Brasil: O resgate de Aristide, o símbolo de esperança do Haiti, em cenas emocionantes de um resgate imperdível que nossa correspondente internacional acompanhou de perto!!

* Veja a seguir no jornal Hoje: " A busca desesperada pelos familiares de Aristide"

* "Agora no Jornal Nacional você vai acompanhar o momento em que Aristide ficou sabendo da morte de seus familiares. Cenas impressionantes que vão comover você! " E logo depois da reportagem de Aristide com o fim da saga pela sua família, o âncora do jornal diz no tom mais irritante do cinismo: A seguir, os gols da rodada!!!!


E a novela de Aristide, que era um símbolo mundial de esperança, depois dos gols da rodada, se transformou em apenas mais uma notícia vaga, sobre algum desastre em algum canto do mundo que serviu pra emissora de TV faturar uma grana e segurar a audiência.

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